sábado, 2 de agosto de 2014

Kierkgaard: um filósofo da existência e da subjetividade!

Um tempo atrás, passando em frente à banca de revistas, notei o nome de Kierkegaard (1813-1855) estampado em uma publicação (edição 179 da Revista CULT) que, melhor folheando notei trazer um dossiê sobre os 200 anos deste “filósofo da existência”.

Não sou um leitor assíduo de Kierkegaard, mas sempre que leio algum trecho de sua obra, ou sobre ele, fico entusiasmado, e dessa vez não foi diferente, li os artigos trazidos pela revista e gostaria de compartilhar uma síntese aqui. Claro que vou me eximir de maiores comentários e só me deliciar com as observações trazidas que, para mim, tão fortemente influenciado pela psicanálise, são tentadoras.

Em primeiro lugar, são vários os clichês voltados para Kierkegaard, e quase todos o associando ao “existencialismo”, a um “crítico de Hegel” ou a um “destruidor da razão”. Tudo isto motivado por considerações como a que dizia que Hegel construíra um palácio racional suntuoso, mas continuava a morar no casebre dos fundos, pois sua filosofia não dava conta da vida e daquilo que torna alguém um indivíduo, sem se perder em abstrações. Kierkegaard sentia falta da “experiência humana” deste indivíduo que, em Hegel, se universalizava. É a busca desta narrativa "vivida na carne", deste tipo de biografia, que o fascina.

Mas, que método Kierkegaard utiliza para desenvolver seu pensamento? Ele é um crítico voraz, mas não destrói o que critica, pois sempre reconhece aquela “força” que pulsa mesmo naquilo que considera equivocado. Por isso, suas construções conceituais não têm pretensão sistemática, já que denuncia como "ilusão" acreditarmos que se pode explicar tudo através de uma ordem lógica. 

Porém, não se trata de criar-se outra ilusão, a da “certeza da dúvida”, mas de assumir a “ironia socrática” como capacidade de negação ilimitada para olhar o indivíduo em sua existência e não simplesmente através de conceitos, admitindo-se a precariedade intelectual da vida, mas buscando-se sempre seu sentido. Ou seja, o ato de duvidar não pode permitir que a vida escape por entre os dedos.

Dessa forma, fundamentalmente preocupado com a "subjetividade" Kierkegaard acabou enveredando-se por três grandes grupos de temas de estudo: 1) a investigação de “tonalidades afetivas”, como a angústia e o desespero; 2) a análise dos estágios da vida (a estética/sensibilidade, a ética/dever, e a religião/vínculo entre o homem e seu destino divino) sob o ponto de vista da existência; e, 3) o estudo da linguagem, centrando-se na investigação da comunicação, do silêncio e da subjetividade daquele que fala.


Como tinha dito acima, o dossiê trouxe contribuições de professores da Unisinos e de Juiz de Fora. Vejamos os principais pontos. 

Seria Kierkegaard, de fato, um apologista do “absurdo”, do "irracionalismo", ou isto seria mais um clichê simplista? Como tudo isto começou? Em 1841, logo após defender sua tese sobre a ironia socrática, fez uma viagem a Berlim. E foi lá que passou a ouvir falar de Trendelenburg, um forte opositor da lógica de Hegel, sob o ponto de vista kantiano. Mais tarde, passaria a admirá-lo e, pasmem, admirou-se também pelos seus estudos sobre as “categorias”. Mas, como isso poderia interessá-lo? Como oportunidade de exercer sua crítica sobre o próprio significado de “categoria” e de “existência”. É o início do questionamento da “lógica”. O fato de se interessar pelo "contrário" é senpre uma excelente oportunidade para Kierkegaard exercer sua crítica. E isto talvez tenha confundido muitos de seus críticos.

Mais tarde, no debate entre Jacobi e Lessing, mais uma vez para surpresa de muitos, Kierkegaard fica ao lado deste último mas, ainda assim, revela-se “cristão” como Jacobi. Como isto teria se dado? Por que, ao final da vida, Kierkegaard diz-se, entretanto, um não cristão? Antes, é preciso entender que, para ele, havia a diferença entre “ser cristão” e “tornar-se cristão”. Entendendo isto, entende-se a admiração por Lessing, que, para Kierkegaard ocupava uma posição semelhante à de Sócrates, modelo de um pensador subjetivo, que pratica a interioridade, o questionamento.

Assim, quando Jacobi, fortemente religioso, teme que Lessing tenha sido levado pelo ateísmo, tenta mostrar que através do “salto mortal” nos libertamos do intelecto e alcançamos a fé. Kierkegaard, apesar de ser um homem religioso, rejeita esse "salto", assim como Lessing. A ideia de um "salto" parece não adequar-se ao processo de “tornar-se” cristão, isto sim expressão de uma autêntica subjetividade.

Para Kierkegaard, portanto, a fé é uma atitude subjetiva, que exige a interioridade, mais que a exterioridade. E é aí que Lessing parece levar vantagem sobre Jacobi aos olhos de Kierkegaard. Fazendo uso da réplica socrática, carregada de ironia, Lessing recusa o “salto mortal” e ganha a admiração de Kierkegaard. Abaixo o exemplo da “réplica” socratiana.
Lessing: Não é de todo mau seu salto mortal e compreendo que um homem inteligente possa baixar a cabeça desse modo para sair à frente. Leva-me contigo, se é possível.
Jacobi: Naturalmente, se queres conhecer o ritmo que me move.
Lessing: Para isso precisaria também saltar, mas já não posso pedir esse salto a minhas velhas pernas e à minha pesada cabeça”
É este modo “justo” de se comportar em relação à religião que encanta Kierkegaard. Lessing estaria convicto que sua religiosidade só interessava a ele e a Deus, e isso exigiria reconhecer a dimensão do silêncio. Ele apenas esforçava-se para ser como devia ser, num “esforço constante” verdadeiramente humilde. Esta seria a essência de um pensador subjetivo, que não está preso a uma verdade objetiva, ao discurso direto, ambos quase sempre presos a dogmas definitivos e alienantes. Por isso, Kierkegaard recusava “dizer-se” um cristão. Estava sempre tentando “tornar-se” um cristão.

Como situar Kierkegaard em relação à sua época? São justamente as reflexões sobre a interioridade e a existência que colocam Kierkegaard à frente de seu tempo. Sua busca em compreender essa passagem do “não ser” ao “ser” é um referencial de contemporaneidade, mas também da antiguidade. Por isso rejeitava a pretensão dos pensadores de sua época em elaborar sistemas filosóficos capazes de abarcar e compreender toda a realidade. Esse “ideal” era muito distinto do de Sócrates, que buscava sempre distinguir aquilo que compreendia daquilo que não compreendia.

Nesse aspecto, Sócrates e o cristianismo se parecem. Enquanto este pede ao indivíduo que se reconheça como “pecador”, Sócrates pede que reconheçamos a própria “ignorância” como caminho para a sabedoria – de fato, ambas as atitudes são reconhecimentos das limitações humanas. É daí que nasce o conceito de “paradoxo absoluto” em Kierkegaard.

Trata-se de uma ideia que envolve a constatação de que a razão é um instrumento necessário, mas não suficiente para o conhecimento da verdade. Seria impossível um homem ensinar a verdade a outro, nenhum homem é mestre de outro homem. No máximo, a tarefa é de auxílio a trazer a sua verdade à tona. Não há uma relação de ensino e aprendizagem. É justamente essa rejeição da possibilidade de compreensão racional da realidade em seu todo que distingue Kierkegaard de seus contemporâneos modernos e o torna contemporâneo dos antigos, como Sócrates, ou dos existencialistas atuais. Ele demonstra que estar adiante de seu tempo pode muitas vezes demandar um olhar ao passado e uma apreciação de ideias que são por muitos, ou até mesmo pela maioria, julgadas obscuras ou superadas.

Mas, e sobre a fé, qual a concepção de Kierkegaard sobre a fé? Ele vai contra aquela tradicional tese de que a religião nega o tempo, a finitude e o corpo, aspectos da existência humana, como se religião fosse algo exatamente oposto ao mundano. Mas, como faz isso? Qual a sua noção de "fé"? Para explicar, ele parte do episódio em que Abraão parte para o sacrifício do filho, sob as ordens de Deus.

Antes de subir ao monte, Abraão teria dito a seus servos: "eu e o rapaz iremos lá e, havendo adorado, voltaremos para junto de vós". Assim mesmo, no "plural", "voltaremos". Mas, se havia uma ordem de Deus, como esperar que voltassem os dois? Pela "esperança", que não é uma certeza objetiva, mas uma aposta existencial. A fé envolveria, então, um duplo movimento: despojar-se de tudo (resignação) e, ao mesmo tempo, manter a esperança de reaver o que foi renunciado. Ou seja, ao nos despojarmos da temporalidade, do corpo e da finitude, temos sempre a esperança de os reaver. É neste sentido que, para Kierkegaard, 
aquele que aprendeu a abrir mão da realidade e, posteriormente, a ela retornou, tem muito mais deleite com a realidade do que aquele que nunca aprendeu a abandoná-la.
Nesse sentido, a fé não é mera resignação da realidade, mas sua "ressignificação". Pode-se entender melhor ainda, por exemplo, na relação que ele faz entre as polaridades "infinito" e "finito", uma das que marcam a existência do homem. O problema não é a existência da polaridade, mas o fato de estarmos sempre nos apegando a um pólo ou outro da relação. É essa "fixação" em um dos pólos que ele chama de "desespero". Trata-se, em função disto, de uma atitude contrária ao "tornar-se si mesmo". Negar um dos pólos é "desespero", "egoísmo", uma "doença do espírito". Não aferrar-se a um dos pólos, mas também não fugir a eles, é o desafio da existência, é tornar-se livre, é tornar-se "si mesmo".

Assim percebemos todo o potencial crítico de Kierkegaard, que nos impele a viver e entender o contrário no sentido de uma busca por aperfeiçoamento. Apegar a um pólo, desconhecendo o outro é algo da ordem do não reconhecimento deste mesmo outro, e de si mesmo. O "tornar-se si mesmo", então, é um processo que implica subjetividade, mas nesta subjetividade o outro não é excluído, não desaparece.


Sem dúvida, a crítica de Kierkegaard é contemporânea, afinal de contas este exercício crítico para tornar-se si mesmo é algo que está perdendo o terreno para o narcisismo que desconhece o outro, em nossa atualidade.


(José Henrique P. e Silva)

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