quarta-feira, 30 de julho de 2014

Baudelaire: "Paraísos Artificiais (o haxixe, o ópio e o vinho)"

Compartilho aqui com os amigos uma rápida sinopse de um trecho do livro de C. Baudelaire (1821-1867). Ele ficou muito conhecido pelo livro “As Flores do Mal”, lançado em 1857 mas, pouco antes, em 1851 publicou o poema “Do Vinho e do Haxixe” que, dez anos depois (1861) viria dar origem a "Paraísos Artificiais". No final deste poema já trazia o tom que marcaria o futuro livro:

O gosto frenético do homem por todas as substâncias, sãs ou perigosas, que exaltem sua personalidade, testemunha sua grandeza. Ele aspira sempre a reavivar sua esperança e a elevar-se ao infinito. Mas é preciso ver os resultados. Temos um licor que ativa a digestão, fortifica os músculos e enriquece o sangue. Tomado em grande quantidade, apenas causa desordem passageira. Temos uma outra substância que interrompe as funções digestivas, que enfraquece os membros e que pode causar uma embriaguez de vinte e quatro horas. O vinho exalta a vontade; o haxixe a aniquila. O vinho é suporte físico; o haxixe é uma arma para o suicídio. O vinho nos torna bons e sociáveis; o haxixe nos isola. Um é laborioso, por assim dizer, o outro essencialmente preguiçoso… enfim, o vinho é para o povo que trabalha e que merece bebê-lo. O haxixepertence à classe dos prazeres solitários, é feito para os miseráveis ociosos.
A citação merece ser vista em detalhes e, para isso, é bom recorrer logo ao livro “Paraísos Artificiais”. Para Baudelaire,
O bom senso nos diz que as coisas da terra não existem inteiramente e que a verdadeira realidade só é encontrada nos sonhos (…) Tanto quanto de uma droga perigosa, o ser humano goza do privilégio de poder tirar novos e sutis prazeres da dor, da catástrofe e da fatalidade.
Estas duas frases de C. Baudelaire estão em sua curta dedicatória do livro à uma amiga, e são reveladoras do caminho que irá percorrer neste trabalho: o de mostrar a extrema fluidez da “realidade”, um conceito aparentemente físico, mas imerso na fantasia e no sonho, e o de como o homem busca caminhos os mais diversos como fontes de prazer, ou atenuação da sua dor.

O ponto de partida? Segundo Baudelaire o "gosto pelo infinito". Mas, o que é isto? Segundo Baudelaire quando temos o cuidado de observar a nós mesmos notamos dias felizes e minutos deliciosos. Trata-se de estados excepcionais, paradisíacos, superiores, anormais, encantadores, estranhos,
onde uma sensibilidade delicada não é mais perturbada por nervos doentios, estes frequentes conselheiros do crime ou do desespero (p.12).
É daí que deriva o gosto pelo infinito, pelo prazer sem fim. Não à toa, então, o homem busca nas ciências os meios de escapar à sua “morada de lobo”, tentando chegar ao paraíso de forma mais rápida. Mas, suas opções de caminho são questionadas por Baudelaire, afinal o homem cai em uma depravação, à qual atribui as razões pelos “excessos culposos”, como no caso da embriaguez.

A semelhança aqui com Freud é inevitável, só que com mais de meio século separando-os. Freud coloca as drogas como um dos meios através dos quais os homens buscam a via do prazer, ou, pelo menos, atenuar a sua dor.

São estas drogas que, para Baudelaire, criam um “ideal artificial“, um “falso ideal”, que passamos a perseguir. Exemplos destas drogas? O haxixe e o ópio. É do uso destas duas substâncias que Baudelaire vai, através de depoimentos, tentar entender este mecanismo de busca pelo “Paraíso Artificial”.

Mas, vou me limitar aos comentários sobre o haxixe. Inicialmente, Baudelaire nos faz uma descrição do haxixe e de seu preparo em pasta. Em seguida, faz um relato pormenorizado da “embriaguez” causada pelo haxixe. Precisamos, aqui, entender a “embriaguez” em seu sentido amplo, de “perda de sentido”.

Fala, inicialmente, da expectativa por sonhos prodigiosos (alucinações) que, na realidade, não trazem nada de miraculoso, apenas excessivo, já que o efeito no cérebro é o de aumentar os fenômenos sonhados. Vive-se uma viagem, intensa, marcada pela inquietação.

É esta inquietação que, logo depois, transformam-se em angústia, tristeza, tortura.´O processo é simples. Uma certa hilariedade extravagante dará lugar a uma ideia de superioridade, genialidade, por sua vez, seguida de um objeto de terror, pânico para, enfim, dar lugar a uma infelicidade de proporções grandiosas. É uma sensação de apaziguamento onde o velho corpo já não parece sustentar os desejos da nova alma. A viagem parece interminável, embora só dure alguns minutos.

Nos momentos finais vem a sagacidade, os sentidos ficam muito apurados e têm lugar as alucinações. Os objetos tomam formas diferentes.
A ideia de uma evaporação, lenta, sucessiva, eterna, tomará conta de seu espírito, e voce aplicará em seguida esta ideia aos seus próprios pensamentos (p. 36).
A percepção do tempo está completamente alterada. No dia seguinte, o cansaço é grande.
Mal você se levanta e um velho resto de embriaguez acompanha-o e o atrasa como os grilhões de sua recente servidão. Suas pernas fracas conduzem-no com timidez e a cada minuto você teme quebrar-se como um objeto frágil… É a punição pela prodigalidade ímpia com a qual gastou seus fluídos nervosos. Voce disseminou sua personalidade aos quatro ventos do céu e, agora, que dificuldade encontra para reuni-la e concentrá-la (p. 44).
Mas, pergunta Baudelaire, qual a moral do haxixe? O fundamental seria reconhecer a ação do veneno sobre a parte espiritual do homem, isto é,
O engrandecimento, a deformação e a exageração de seus sentimentos habituais e de suas percepções morais…(p.45).
Que logo se transforma em servidão.

É por isto que Baudelaire classifica o haxixe como um “inimigo perturbador”, um “demônio desordenado” que causa profunda “devastação moral”, resultado daquela episódica sensação de ser um rei que “vive na solidão de sua convicção”.

Trata-se de um rápido momento em que a natureza humana é “corrigida e idealizada”, onde se pode dizer: “sou o mais virtuoso dos homens!… sou o centro do universo!… sou Deus!“.

Mas, é um “jogo proibido” onde o homem vende sua alma para não ter mais que suportar as condições de sua vida real. É, como diz Balzac, a “abdicação da vontade“.

Aqui temos um ponto central em Baudelaire: tentamos eliminar a dor abdicando da vontade e da liberdade para tentar alcançar os prazeres do paraíso. Trata-se, entretanto, de um prazer viciante, um paraíso conquistado à custa da saúde. Dessa forma, conclui Baudelaire:
O haxixe, como todos os prazeres solitários, torna o indivíduo inútil aos homens e a sociedade supérflua para o indivíduo, levando-o a admirar a si próprio sem cessar e empurrando-o, di a dia, ao abismo luminoso onde ele admira sua face de narciso (p. 63)
Baudelaire não admite a servidão da vontade, da intenção, da contemplação em troca de um prazer momentâneo, embora grandioso…mas narcisista.

Cabem algumas indagações sobre este tema: Onde está, de fato, nosso “jardim da beleza verdadeira”? Como alcançá-lo? Podemos, de fato? A que custo? Ou ele só nos faz lembrar de nossos limites, angústias e dores?

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Baudelaire, Charles. Paraísos Artificiais. Tradução de Alexandre Ribondi, Vera Nóbrega e Lúcia Nagib. – Porto Alegre: L&PM, 2011.

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